30 de outubro de 2016

O QUE É A REFORMA PROTESTANTE?


O final da Idade Média foi marcado por muitas convulsões políticas, sociais e religiosas. Entre as políticas destacou-se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a Inglaterra e a França, na qual tornou-se famosa a heroína Joana D’Arc. Houve também muitas revoltas camponesas, o declínio do feudalismo, a expansão das cidades e o surgimento do capitalismo. No aspecto social, havia fomes periódicas e o terrível flagelo da peste bubônica ou peste negra (1348). As guerras, epidemias e outros males produziam morte, devastação e desordem, ou seja, a ruptura da vida social e pessoal. O sentimento dominante era de insegurança, ansiedade, melancolia e pessimismo. Isso era ilustrado pela “dança da morte”, gravuras que se viam em toda parte com um esqueleto dançante.

Na área religiosa, houve a erosão do ideal da cristandade ou “corpus christianum”, a sociedade coesa sob a liderança da igreja e dos papas. A religiosidade era meritória, com missas pelos mortos, crença no purgatório e invocação dos santos e Maria. Ao mesmo tempo, havia grande ressentimento contra a igreja por causa dos abusos praticados e do desvio dos seus propósitos. Isso é ilustrado pela situação do papado no final do século 15 e início do século 16. Os chamados papas do renascimento foram mais estadistas e patronos das artes e da cultura do que pastores do seu rebanho. A instituição papal continuou em declínio, com muitas lutas políticas, simonia, nepotismo, falta de liderança espiritual, aumento de gastos e novos impostos eclesiásticos. Como papa Alexandre VI (1492-1503), o espanhol Rodrigo Borja foi um generoso promotor das artes e da carreira dos seus filhos César e Lucrécia; Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, comandando pessoalmente o seu exército; Leão X (1513-1521), o papa contemporâneo de Lutero, teria dito quando foi eleito: “Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo”.

O contexto social e religioso

Vimos, na seção anterior, alguns elementos que caracterizavam a sociedade européia às vésperas da Reforma. Havia muita violência, baixa expectativa de vida, profundos contrastes socioeconômicos e um crescente sentimento nacionalista. Havia também muita insatisfação, tanto dos governantes como do povo, em relação à Igreja, principalmente ao alto clero e a Roma. Na área espiritual, havia insegurança e ansiedade acerca da salvação em virtude de uma religiosidade baseada em obras, também chamada de religiosidade contábil ou “matemática da salvação” (débitos = pecados; créditos = boas obras).

Foi bastante inusitado o episódio mais imediato que desencadeou o protesto de Lutero. Desde meados do século 14, cada novo líder do Sacro Império Romano era escolhido por um colégio eleitoral composto de quatro príncipes e três arcebispos. Em 1517, quando houve a eleição de um novo imperador, um dos três arcebispados eleitorais (o de Mainz ou Mogúncia) estava vago. Uma das famílias nobres que participavam desse processo, os Hohenzollern, resolveu tomar para si esse cargo e assim ter mais um voto no colégio eleitoral. Um jovem da família, Alberto, foi escolhido para ser o novo arcebispo, mas havia dois problemas: ele era leigo e não tinha a idade mínima exigida pela lei canônica para exercer esse ofício. O primeiro problema foi sanado com a sua rápida ordenação ao sacerdócio.

Quanto ao impedimento da idade, era necessária uma autorização especial do papa, o que levou a um negócio altamente vantajoso para ambas as partes. A família nobre comprou a autorização do papa Leão X mediante um empréstimo feito junto aos banqueiros Fugger, de Augsburgo. Ao mesmo tempo, o papa autorizou o novo arcebispo Alberto de Brandemburgo a fazer uma venda especial de indulgências, dividindo os rendimentos da seguinte maneira: parte serviria para o pagamento do empréstimo feito pela família e a outra parte iria para as obras da Catedral de São Pedro, em Roma. E assim foi feito. Tão logo foi instalado no seu cargo, Alberto encarregou o dominicano João Tetzel de fazer a venda das indulgências (o perdão das penas temporais do pecado). Quando Tetzel aproximou-se de Wittenberg, Lutero resolveu pronunciar-se sobre o assunto.

Martinho Lutero (1483-1546)

Martinho Lutero nasceu em 1483 na pequena cidade de Eisleben, na Turíngia, em um lar muito religioso. Seu pai trabalhava nas minas e a família tinha uma vida confortável. Inicialmente, o jovem pretendeu seguir a carreira jurídica, mas em 1505 defrontou-se com a morte em uma tempestade e resolveu abraçar a vida religiosa. Ingressou no mosteiro agostiniano de Erfurt, onde se dedicou a uma intensa busca da salvação. Em 1512, tornou-se professor da Universidade de Wittenberg, onde passou a ministrar cursos sobre vários livros da Bíblia, como Gálatas e Romanos. Isso lhe deu um novo entendimento acerca da “justiça de Deus”: ela não era simplesmente uma expressão da severidade de Deus, mas do seu amor que justifica o pecador mediante a fé em Jesus Cristo (Rom 1.17).

No dia 31 de outubro de 1517, diante da venda das indulgências por João Tetzel, Lutero afixou à porta da igreja de Wittenberg as suas Noventa e Cinco Teses, a maneira usual de convidar-se uma comunidade acadêmica para debater algum assunto. Logo, uma cópia das teses chegou às mãos do arcebispo, que as enviou a Roma. No ano seguinte, Lutero foi convocado para ir a Roma a fim de responder à acusação de heresia. Recusando-se a ir, foi entrevistado pelo cardeal Cajetano e manteve as suas posições. Em 1519, Lutero participou de um debate em Leipzig com o dominicano João Eck, no qual defendeu o pré-reformador João Hus e afirmou que os concílios e os papas podiam errar.

Em 1520, a bula papal Exsurge Domine (= “Levanta-te, Senhor”) deu-lhe sessenta dias para retratar-se ou ser excomungado. Os estudantes e professores da universidade queimaram a bula e um exemplar da lei canônica em praça pública. Nesse mesmo ano, Lutero escreveu várias obras importantes, especialmente três: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O Cativeiro Babilônico da Igreja e A Liberdade do Cristão. Isso lhe deu notoriedade imediata em toda a Europa e aumentou a sua popularidade na Alemanha. No início de 1521, foi publicada a bula de excomunhão, Decet Pontificem Romanum. Nesse ano, Lutero compareceu a uma reunião do parlamento, a Dieta de Worms, onde reafirmou as suas idéias. Foi promulgado contra ele o Edito de Worms, que o levou a refugiar-se no castelo de Wartburgo, sob a proteção do príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio. Ali, Lutero começou a produzir uma obra-prima da literatura alemã, a sua tradução das Escrituras.

A Reforma na Alemanha

A partir de então, a reforma luterana difundiu-se rapidamente no Sacro Império, sendo abraçada por vários principados alemães. Isso levou a dificuldades crescentes com os principados católicos, com o novo imperador Carlos V (1519-1556) e com o parlamento (Dieta). Na Dieta de 1526, houve uma atitude de tolerância para com os luteranos, mas em 1529 a Dieta de Spira reverteu essa política conciliadora. Diante disso, os líderes luteranos fizeram um protesto formal que deu origem ao nome histórico “protestantes”. No ano seguinte, o auxiliar e eventual sucessor de Lutero, Filipe Melanchton (1497-1560), apresentou ao imperador Carlos V a Confissão de Augsburgo, um importante documento que definia em 21 artigos a doutrina luterana e indicava sete erros que Lutero via na Igreja Católica Romana.

Os problemas político-religiosos levaram a um período de guerras entre católicos e protestantes (1546-1555), que terminaram com um tratado, a Paz de Augsburgo. Esse tratado assegurou a legalidade do luteranismo mediante o princípio “cujus regio, eius religio”, ou seja, a religião de um príncipe seria automaticamente a religião oficial do seu território. O luteranismo também se difundiu em outras partes da Europa, principalmente nos países nórdicos, surgindo igrejas nacionais luteranas na Suécia (1527), Dinamarca (1537), Noruega (1539) e Islândia (1554). Lutero e os demais reformadores defenderam alguns princípios básicos que viriam a caracterizar as convicções e práticas protestantes: sola Scriptura, solo Christo, sola gratia, sola fides, soli Deo gloria. Outro princípio aceito por todos foi o do sacerdócio universal dos fiéis.

Fonte: Mackenzie




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